As manifestações culturais tradicionais atravessam séculos e se mantêm vivas no Rio Grande do Norte, mesmo em meio a pouco investimento. O patrimônio cultural imaterial do estado é repleto de bons exemplos de que a arte resiste, se reinventa e segue encantando as novas gerações. Essa cena é apoiada com as leis de incentivo, mas artistas pedem mais apoio e defendem que a cultura popular nordestina esteja inserida também na educação.
Na visão do professor André Carrico, do Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, um dos desafios enfrentados pela cultura popular é a visão do senso comum voltada para algo velho. “As pessoas ainda têm uma ideia muito folclorizada da cultura popular, de que é uma cultura que parou no tempo. E não é nada disso. A cultura popular está viva”, diz Carrico.

O RN, diz o professor, tem muitos editais de fomento à cultura, mas ainda é difícil para alguns brincantes populares acessarem esses benefícios. Citando a sua pesquisa, que enfoca o teatro popular de bonecos no Estado, ele observa que muitos mestres e mestras da cultura popular não têm letramento digital para entender os editais.
“As leis ainda são insuficientes. Até porque, no cômputo geral dos orçamentos, em nível municipal, estadual e federal, o que se tem para secretarias e Ministério da Cultura é ínfimo. Temos um problema que é entender a cultura como política de Estado e como investimento, não como gasto”, afirma.
Interesse das novas gerações
Ainda segundo Carrico, os entraves para que as manifestações tradicionais sigam nas novas gerações também englobam o modo como elas são vistas. “Às vezes é difícil chegar nas crianças porque a cultura popular é transmitida nesse lugar da mumificação, de prateleira de museu, e não nesse lugar de algo vivo, de algo que se modifica também com o tempo. A cultura popular não é engessada, a cultura popular se modifica através das gerações”.

Passar o interesse pelas tradições culturais para as gerações mais jovens é tarefa fácil para o Boi de Reis – o Bumba-meu-boi do RN. As crianças ficam encantadas com a teatralização da ressurreição do boi, com cores vivas e uma história contada por meio da dança, da música e da performance dos personagens.
O grupo Boi de Reis do Bom Pastor, que surgiu em 2004 com o mestre Cassiano Pontes, 56, é um exemplo disso. “É muito gratificante chegar nas apresentações, em algumas escolas, e ver a criançada vibrar com o nosso Boi de Reis, com a nossa cultura popular”, diz mestre Cassiano.
Para manter a tradição, o Boi de Reis do Bom Pastor se apresenta em escolas e em eventos. “A gente sempre está viajando, representando Natal, levando o nome do nosso bairro, da nossa comunidade e do Rio Grande do Norte para outros estados”, comemora mestre Cassiano.
Ele considera que uma forma de o poder público valorizar os grupos de cultura popular é apoiar mais as atividades artísticas financeiramente. Outra forma que o grupo achou de ampliar suas atividades entre as crianças foi um projeto numa escola da comunidade. “Vamos montar um Boi de Reis para a criançada. Eles viram a apresentação do nosso boi, e nós vimos o interesse deles em querer formar um boi”, diz Cassiano.

O professor André Carrico observa que a cultura popular não está inserida no currículo das escolas, desde a educação básica até o ensino superior. “Toda criança, na sua escola, vai um dia no museu Câmara Cascudo, no museu do folclore, que tem uma apresentação de mamulengo, mas isso é muito pontual. Não tem uma coisa mais permanente”.
“Acho que a cultura popular também tem que estar inserida de uma forma mais orgânica dentro do currículo escolar, como uma construção de conhecimento, não apenas o conhecimento da aula de artes, mas também o conhecimento do popular no que diz respeito à matemática, às ciências de uma maneira geral”, sugere.
Sua pesquisa aborda estética, dramaturgia e linguagem do teatro de bonecos popular, mas questões como o acesso a verbas atravessam os estudos. Quando chegou ao RN, Carrico percebeu que o Rio Grande do Norte é o estado nordestino com mais brincantes de boneco popular – ou João Redondo, como é chamado aqui.
Literatura popular
O pernambucano Abaeté do Cordel, 64, mora em Natal há 40 anos e fundou a Associação Cultural Casa do Cordel na capital potiguar, em 2007. Orgulhoso de ser conhecido até mesmo fora do Nordeste, ele avalia que o RN é hoje o estado que mais produz literatura de cordel, uma forma popular de narrar histórias em pequenos folhetos.
“Quando eu era menino, o lazer da gente era ir pra feira, ver o pessoal cantar cordel”, conta Abaeté, que cresceu em Sertânia (PE) em meio à tradição popular. Veio para Natal trabalhar em um mercado, mas nas horas vagas escrevia seus versos.
Para ele, a literatura de cordel segue forte entre as novas gerações. “No estado, nós temos muitas crianças escrevendo cordel”. Ele cita o projeto Cordel com Pipoca, no bairro Mãe Luiza, em Natal, que estimula a produção e a leitura de cordéis na infância.
O exemplo, porém, não reflete uma ampla valorização do cordel. Abaeté diz que é preciso trabalhar mais o cordel na educação e que a cultura popular ainda sofre preconceito.
A Casa do Cordel se mantém por meio da venda de cordéis, obras de xilogravura e outras artes e é mais visitada em agosto, o Mês do Folclore. Também conta com 110 associados, que pagam um valor mensal para apoiar as atividades.
Há 10 anos a Casa se formalizou como associação para participar dos editais de leis de incentivo. “Tem os editais da [lei] Aldir Blanco, [lei] Paulo Gustavo, mas é uma vez no ano, duas… Não dá pra manter só dessa forma”, afirma Abaeté. Abaeté avalia que o cordel se reinventou. Os temas são atuais e voltados a questões sociais, e a estrutura não é mais tão engessada.
Cultura independente
O Clube Frisson, que funciona na Ribeira, em Natal, busca fomentar a cena de música eletrônica na capital potiguar de forma independente e acessível. A produtora do clube Frisson, WIRE, 30, conta que a atividade é mantida por amor.

“É uma coisa muito complexa e tem que ter muito amor pelo que a gente faz, porque o próprio nome diz – é independente. A gente não tem muito apoio. A Frisson nasceu da vontade de vários produtores que já produziam eventos há muito tempo de se juntar e tentar ter seu espaço”, afirma WIRE.
“Mas é uma luta diária, de tentar se pagar e tentar pagar as outras pessoas, os fornecedores. E é uma luta principalmente em um estado em que a Secretaria de Cultura foi criada um dia desses”, pondera.
A produtora afirma que é um desafio começar na cena cultural e que o clube ainda não foi contemplado em nenhum edital de fomento e nem teve investimentos externos. O único apoio público que conseguiu em pouco mais de um ano de existência foi da vereadora Brisa Bracchi (PT).
“Fazer cultura no Rio Grande do Norte depende muito de um coletivo plural, de uma comunidade que te abrace”, diz WIRE. “Tem meses muito difíceis. Por exemplo, no começo do ano a gente fez uma campanha com uma vaquinha para pagar alguns danos que ocorreram na Frisson”.
O AGORA RN buscou órgãos responsáveis pelo tratamento do patrimônio cultural a nível estadual para saber mais sobre o apoio à cena cultural. A Fundação José Augusto e a Secretaria de Estado da Cultura do RN não responderam aos questionamentos até o fechamento desta edição. O Ministério Público do RN também foi procurado e não respondeu.
Esta reportagem encerra a série “Retratos da nossa história” , que resgata pontos fundamentais da cultura e da história de Natal e do Rio Grande do Norte e busca entender como o patrimônio público local é tratado.